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Lendo – “Clarice,”

publicado em:27/02/10 3:12 AM por: Kamila Azevedo Livros

“Quando acabardes este livro chorai por mim um aleluia. Quando fechardes as últimas páginas deste malogrado e afoito e brincalhão livro de vida então esquecei-me. Que Deus vos abençoe então e este livro acaba bem. Para enfim eu ter repouso. Que a paz esteja entre nós, entre vós e entre mim. Estou caindo no discurso? Que me perdoem os fieis do templo: eu escrevo e assim me livro de mim e posso então descansar”. (Clarice Lispector)

Eu não consigo me esquecer da primeira vez em que vi uma imagem em vídeo da escritora Clarice Lispector.   Tal encontro meu com Clarice aconteceu quando eu estava na faculdade e, enquanto zapeava nos canais da televisão, parei na imagem de uma mulher de olhar desafiador (mas que pouco encarava seu entrevistador), que ficava em silêncios atordoantes e que não fazia a mínima questão de demonstrar simpatia ou o sentimento de estar à vontade naquela situação.

Confesso: Clarice me assustou, me deixou angustiada e suas lacônicas frases, acompanhadas de uma sinceridade cortante, foram quase como um soco no estômago. Foi inevitável, após isso, querer ler alguma coisa dela e assim comecei pelo seu derradeiro livro “A Hora da Estrela”, que foi lançado em outubro de 1977, justamente dois meses antes da morte de Lispector, a qual aconteceu em 9 de dezembro de 1977 (um dia antes do seu aniversário de 57 anos), no Rio de Janeiro.

(A título de curiosidade, como fiquei sabendo no decorrer da leitura de “Clarice,”, biografia escrita pelo norte-americano Benjamin Moser, a entrevista concedida à TV Cultura, em fevereiro de 1977, a qual pode ser encontrada na íntegra no YouTube, é o único registro da mítica escritora em vídeo.)

A entrevista concedida à TV Cultura é só um dos exemplos que comprovam a fama de mulher enigmática e de Esfinge que Clarice Lispector possuía entre aqueles que a conheciam e aqueles cujo contato se restringia à leitura dos livros que ela escrevia. Uma frase clássica dela, neste sentido: “uma das coisas que me deixam infeliz é essa história de monstro sagrado: os outros me temem à toa, e a gente termina temendo a si própria. A verdade é que algumas pessoas criaram um mito em torno de mim, o            que me atrapalha muito: afasta as pessoas e eu fico sozinha. Mas você sabe que sou de trato muito simples, mesmo que a alma seja complexa. O sucesso quase me fez mal: encarei o sucesso como uma invasão. Mesmo o sucesso quando pequeno, como o que tenho às vezes, me perturba o ouvido interno”. (p. 526)

Os muitos capítulos de “Clarice,” são o resultado direto do impacto que as palavras que ela escreveu, ao longo de sua vida literária, teve sobre aqueles que conheceram a sua obra. Tá na cara que Benjamin Moser – para continuar com a analogia da Esfinge – foi um dos muitos devorados pela escrita de Clarice e se sentiu compelido a tentar desvendar o mistério mesmo que foi a vida dela – a qual, diga-se de passagem, foi a grande matéria-prima da arte de Lispector. Ela escrevia para tentar encontrar a si mesma ou, como ela mesma dizia, “para salvar a vida de alguém. Provavelmente a minha própria”. (p. 103).

A leitura de “Clarice,” me reservou inúmeras surpresas – todas elas relacionadas à figura da própria escritora. Talvez, por sempre ter tido essa imagem forte da entrevista da TV Cultura na minha mente, vislumbrava Clarice como uma alma angustiada e cheia de problemas (ela era, efetivamente, assim e chegou uma época de sua vida em que tornou praticamente uma caricatura de si mesma, uma mulher com singularidades excêntricas e que era uma pessoa totalmente imprevisível). Entretanto, a escritora também foi uma mulher que – apesar de todo o seu retrospecto sofrido – se realizou de uma forma plena pessoal (casamento – mesmo que desfeito – e filhos amados e queridos) e profissionalmente (livros publicados e traduzidos em inúmeros países, objeto de estudos em diversas línguas). Mesmo assim, nada era simples para ela: “Eu procuro fazer o que se deve fazer, e ser como se deve ser, e me adaptar ao ambiente em que vivo – tudo isso eu consigo, mas com o prejuízo do meu equilíbrio íntimo, eu o sinto.” (p. 241)

Em seu livro, Benjamin Moser explora todas as diversas facetas de Clarice – as mais públicas, as mais míticas e aquelas que ficaram na privacidade. Mas, o autor vai muito mais além e consegue a proeza de nos deixar mais próximos de alguém que era, sem sombra de dúvidas, totalmente inatingível – porque a verdade é que Clarice se abriu por completo para muitos poucos. A biografia “Clarice,” é extensa (apesar de que senti falta de ver fotos dos muitos momentos de vida da escritora e de ver os locais descritos por Moser) e é uma consequência de um belo trabalho de pesquisa feito pelo norte-americano (sugiro ler os capítulos acompanhados de suas notas de rodapé, as quais se encontram ao final do livro). E imagino que ele tenha ficado, de certa maneira, orgulhoso, porque, contra todos os obstáculos, até mesmo aqueles que foram vislumbrados pela sua homenageada (Clarice sempre disse que seria muito difícil para alguém escrever uma biografia sobre ela), ele conseguiu! Se éramos decifrados e devorados pela Esfinge Clarice Lispector, agora teremos a chance de fazer o contrário.

Clarice, (2009)
Autor: Benjamin Moser
Editora: CosacNaify

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A última modificação foi feita em:outubro 21st, 2019 as 6:38 pm


Jornalista e Publicitária


Comentários


Esta entrevista tb teve um efeito semelhante sobre mim. A voz dela, o olhar, o sotaque, e principalmente as respostas as vezes brutas que ela deu ao entrevistador, causam esse estranhamento, a mulher era realmente um misterio. Ainda nao terminei o livro (pausei a leitura e retornarei mais tarde), mas pelo que li, me senti completamente envolvida e emocionada com a pessoa de Clarice, sua vida, e principalmente passado. Sem duvida essa biografia facilitara a compreensao da obra da escritora.

Tb senti falta de uma documentacao visual, essa, pelo menos ate agora, a unica falha q vi no trabalho do biografo.

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Romeika, ela era mesmo um mistério. Como o livro mesmo diz: poucas pessoas se aproximaram dela. Espero que retome logo a leitura de “Clarice,” porque é uma obra sensacional. Causou um grande impacto em mim e me senti como você: completamente envolvida e emocionada com a pessoa dela, a vida dela, a história da família dela. Tanto que tive que controlar as lágrimas ao final. Depois, Romeika, vi que tem um livro que conta a vida de Clarice em imagens. Talvez, por isso, não tenhamos essa documentação visual nesta biografia do Moser.

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Bela frase final. Essas biografias que dão contam de esfinges como Clarice são realmente iresistíveis. Se não definitivas, são algo bem pero disso. Recentemente terminei de ler uma sobre Heath Ledger. Muito boa.
Bjs

PS: Essa eu ainda não li! rsrs

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Alem dos mistérios
cantados e decantados,
Clarice ainda provoca,
instiga e se mistifica
cada vez mais
num mar de admiradores
que não se calam
ante sua palavra certeira.

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Reinaldo, obrigada! Não conheço esse livro do Heath Ledger. Qual o nome? Beijos!

Hneto, exatamente! Belo poema!

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Adoro Clarice Lispector, uma das minhas autoras favoritas. E este livro já estava em minha lista, agora depois de ler este belo texto, não vou mais adiar a compra.

Beijos! 😉

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Mayara, não adie mesmo a compra do livro. É maravilhoso! Uma leitura altamente recomendada! Beijos!

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Oi Ka, tudo bem?
O nome do livro é: “Heath Ledger, o astro sombrio de Hollwood
autor: Briam J.Robb
Panini books

O livro é um tanto sensacionalista, mas é uma boa pedida!
Bjs

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Gosto muito de Clarice Fotobiografia de Nádia Gotlib, para mim o material mais vasto e interessante lançado sobre Lispector.

Simplesmente não vivo sem ela.

A Paixão segungo GH me fundamentou como ser humano.
Perto do Coração Selvagem, o primeiro livro dela, tatuei o nome em mim…
Água Viva é intenso, sempre!
O livro dos prazeres já reli, em momentos de dor e amor…

Gosto muito! abraço

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Reinaldo, tudo bem. E contigo? Anotei o livro aqui! Beijos!

Cristiano, eu vou atrás desse livro aí que você citou. Não conhecia! E eu também não consigo viver sem as palavras de Clarice. Abraço!

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[…] com uma imagem austera. Para muitos, ela era considerada, como bem Benjamin Moser definiu na biografia que escreveu sobre ela, a Esfinge do Rio de Janeiro. Porém, de uma forma ou de outra, Clarice Lispector atingiu e […]

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