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Lendo – “Água Viva”

publicado em:13/03/10 12:05 AM por: Kamila Azevedo Livros

“(…) na pintura como na escritura procuro ver estritamente no momento em que vejo – e não ver através da memória de ter visto num instante passado. O instante é este. O instante é de uma iminência que me tira o fôlego. O instante é em si mesmo iminente. Ao mesmo tempo que eu o vivo, lanço-me na sua passagem para outro instante”. (págs. 75-76)

Ao contrário de outros livros escritos por Clarice Lispector, “Água Viva” é uma obra que celebra a alegria de viver o instante já, a alegria de se sentir livre, a alegria de criar, a alegria de pensar, a alegria de amar, a alegria de escrever ou de expressar suas ideias via qualquer forma de arte, enfim, é uma obra em que a escritora dá vazão a uma série de temas. Em grande parte de sua leitura, teremos a impressão de que Clarice está jorrando tudo aquilo que passa pela sua cabeça, sem qualquer tipo de filtro. Como ela diz no seguinte segmento do livro: “então escrever é o modo de quem tem a palavra como isca: a palavra pescando o que não é palavra. Quando essa não palavra – a entrelinha – morde a isca, alguma coisa se escreveu. Uma vez que se pescou a entrelinha, poder-se-ia com alívio jogar a palavra fora. Mas aí cessa a analogia: a não palavra, ao morder a isca, incorporou-a. O que salva então é escrever distraidamente”.

Não diria que Clarice Lispector escreveu “Água Viva” totalmente distraída. É fato que não existe uma preocupação em seguir uma certa estrutura narrativa, uma vez que a autora vai dando vazão à felicidade recém-descoberta pela sua personagem principal após ela encontrar a liberdade – que, no livro, pode ser compreendida de diversas maneiras -, mas podemos ver a preocupação da autora em seguir uma linha, em manter a personagem dentro de uma realidade bem definida. Ou seja, a personagem/narradora sabe bem o que quer e o que deseja através das palavras que ela delineia a cada linha do livro.

Um fator importante de “Água Viva” para mim foi que a sua história me parece muito tentar fazer um retrato da euforia da felicidade e, depois, da tristeza que com ela vem acompanhada. Do medo do futuro, mas da vontade de encará-lo de frente. Da necessidade de se viver o agora, uma vez que todos teremos o mesmo destino. Daquela sensação estranha de que a personagem principal do livro era alguém que, na maior parte de sua vida, se deparou com a página vazia, com a tela em branco, com o momento em que o nada existia e, de repente, se viu diante do tudo e das inúmeras possibilidades que ele traz. Ou seja, ela encontrou o seu tema, o que falar e não vai parar mais.

A isso tudo que descrevemos aqui se dá o nome de fluxo de consciência. Esta é uma técnica narrativa que foi muito usada por escritores como James Joyce e Virginia Woolf e que consiste em deixar o pensamento da sua personagem fluir sem distinções de tempo e espaço, bem como de linearidade. Não se sabe ao certo se o que a personagem nos relata é uma lembrança somente ou algo que está acontecendo neste exato instante. E é nesta mistura em que tudo acontece. Ou, como diria a própria Clarice, nesta obra: “só no tempo há espaço para mim”. E a personagem principal de “Água Viva” soube muito bem como existir dentro dele.

Água Viva (1973)
Autora: Clarice Lispector
Editora: Rocco

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A última modificação foi feita em:outubro 21st, 2019 as 6:30 pm


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Comentários


Como de costume nas suas postagens sobre livros, ainda não tive oportunidade de conferir a obra, mas Clarice Lispector sempre chamou minha atenção. Bom fim de semana!

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Vinícius, e eu estou numa fase totalmente Clarice. Bom final de semana para você também!

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Clarice Lispector é uma autora genial. Água Viva ainda não li, mas tenho o livro.

Só que tenho uns 4 ou 5 na frente pra ler. 😉

Abs!

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O mais interessante em Água Viva é a maneira como a narrativa flui intensamente, rapidamente, sem medo de viver, sem medo de existir. Aqui o fluxo de consciência é ainda mais nítido e sem rodeios, se faz existente como foco importante na obra e na estrutura da personagem.

Em 1971, Clarice Lispector conclui as quase duzentas páginas de um manuscrito a que intitulado “Objeto gritante”. Composto na maioria de crônicas publicadas anteriormente em jornal, “Objeto gritante” é a radicalização de uma tendência em Clarice já flagrada no seu romance anterior, Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres.
Como sabemos “Objeto gritante” nunca foi publicado. Revisado e reduzido à metade, este manuscrito (se é que dele ainda podemos falar) seria publicado três anos mais tarde com novo título: Água viva (1973). Ao longo da revisão, elementos narrativos, várias ‘tramas intimistas paralelas’ e dezenas de capítulos foram suprimidos. Eis que o livro que conhecemos seja apenas um ‘resumo’ daquele original escrito por Lispector.

Este livro, pra mim, serve como monólogo de vida. É perfeito, é intenso.

Leia “Um sopro de vida” e “A Via crucis do corpo”, são muito bons também. Eu consegui concluir, mês passado, a minha coleção de Lispector.

Abs

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Aparentemente gosta muito da Clarice Lispector, não? Vou procurar algo da mesma, para ler!

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Bruno, como eu disse, tô numa fase totalmente Clarice. Tô com muitos livros dela e de outros para ler aqui! Abraços!

Cristiano, monólogo de vida é uma boa palavra para resumir esse livro. Estou com “A Via Crucis do Corpo” para ler aqui! E espero concluir minha coleção de Lispector em breve! Abraços!

Jenson, adoro a Clarice e leia-a!

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Eu já li e reli Água Viva incontáveis vezes, por sinal,estou relendo,agora,mais uma vez. Gostaria de comentar que você conseguiu detectar cada partícula do livro e expor sob a frma de palavras.Lindíssima intimidade que tens com Clarice ( Minha autora favorita). Sendo assim, espero passar mais vezes por aqui e ser contemplado com tamanha sensibilidade na descrição de obras que salvam pessoas. Sim, minha vida nunca foi a mesma desde a primeira leitura de água Viva e como consequencia, de e em Clarice Lispector.

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Kamila numa fase total Clarice, né? Rsrs. Sendo bem sincero, eu gosto muito do jeito de Lispector, mesmo ela fazendo uma literatura que não é uma das minhas preferidas, e Água Viva não é minha obra favorita (acho que A paixão segundo G.H foi a única que me marcou profundamente). E adorei o texto!

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Fael M., procure mesmo! Leitura recomendada!

Magno, obrigada! A Clarice é uma das minhas autoras favoritas também! Espero que possas passar mais vezes por aqui! Obrigada mesmo pelo comentário!

Luís, fase Clarice total! 🙂 Obrigada pelo comentário!

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Nada na literatura brasileira é comparável a grande Clarice Lispector. Sou fã de sua obra, em especial de “A Legião Estrangeira” e “Perto do Coração Selvagem”, livros excelentes e necessários dentro do contexto literário no nosso país. Mas, pessoalmente, não gosto muito de “Água Viva”. Mas aí é uma questão de gosto adquirido, né. Um abraço.

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Mandy, também adoro Clarice e conheço pouco Drummond.

Luiz Henrique, concordo contigo! Exceto na parte relacionada à “Água Viva”. Eu gosto do livro! Abraço!

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O estilo da Clarice é ao mesmo tempo entorpecente e também profundo. Dela só li A Hora da Estrela e Laços de Família. O primeiro é magnífico. Dizem que Água Viva é um dos trabalhos mais complexos dela. Tenho muita vontade de ler. Quem sabe esse post não me anima!

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Li ano passado por causa do vestibular. È sempre muito estimulante ler Clarice. Quero ler as outras obras dela.

Beijos! 😉

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